Dança para Crianças?

Publicado em http://ctrlaltdanca.com/2014/03/04/texto-danca-para-criancas-gabriela-alcofra-propoe-reflexoes-a-partir-de-espetaculo-da-cia-dani-lima-rj/

DANÇA PARA CRIANÇAS? 

Sempre achei desafiadoras manifestações artísticas destinadas especialmente ao público infantil. Afinal, este público ingênuo e simples é também um dos mais sinceros e críticos. Agradá-los em meio à era digital, com tanto apelo tecnológico, onde realidades virtuais e virtuosismos audiovisuais estão tão presentes, é tarefa árdua para criadores. Se essas manifestações se enquadram na tão vasta categoria de “arte contemporânea”, visualizo um esforço ainda maior.

Sim, no cenário atual o conceito parece valer mais do que a técnica; a narrativa, assim como a expressão, são coadjuvantes e ficam à mercê de uma dramaturgia essencialmente baseada na ideia ou na própria ação. Sendo assim, sempre que ouço falar da tal “dança contemporânea para crianças”, me acometo de grande curiosidade sobre como o artista resolveu esse paradoxo entre atualidade artística e necessidade do público-alvo. Pequena Coleção de Todas as Coisas (2013) é a versão infantil do espetáculo (adulto) Pequeno Inventário de Coisas-Comuns (2009), ambos da Cia. Dani Lima (RJ). Por ser uma versão de outro, fiquei ainda mais curiosa e interessada.

Construído a partir de uma pesquisa feita em listas e sobre listas, o espetáculo adulto – Pequeno Inventário de Coisas-Comuns – desenvolve uma dramaturgia que movimenta corpos e objetos em tempos distintos (perceptíveis e sutis), numa quase interminável classificação de coisas – objetos, funções, tamanhos, cores, sensações. O espectador mergulhado na plasticidade dos elementos cênicos pode chegar a se perguntar se aquele espetáculo é de dança mesmo ou uma pesquisa plástica, que inclui também o formato audiovisual.  Obviamente, essa pergunta é capciosa no mundo contemporâneo, onde fronteiras entre campos de expressão quase já não existem mais. No entanto, confesso ver no espectador uma expectativa, um desejo de categorização que, se investigados a fundo nesse exemplo, se justificam pela pesquisa de movimento da cena e por breves duos durante o espetáculo.

A versão infantil – Pequena Coleção de Todas as Coisas – mantém semelhante o desenho de cena, os elementos cênicos e a proposta audiovisual, mas explora a fundo as funções e categorias dos seus objetos, numa explosão de cores “pop” que alegram e convidam o olhar. Numa poética próxima a de Manoel de Barros, os intérpretes abusam da des-funcionalização dos objetos e suas categorias, aguçando o exercício da criação em seu estado puro, convidando sentido e ação a caminharem juntos.

Eles [os intérpretes] misturam, organizam, classificam e des-inventam todos os elementos cênicos numa grande brincadeira repleta de imagens, situações inesperadas e relações baseadas nos jogos infanto-juvenis e no espírito criativo e alerta de toda criança. A “arte de des-inventar” supera a reinvenção, pois proporciona o ato criativo que acontece na relação ativa e inteligente entre proposição dos atores e suposições da plateia. É como um grande jogo de adivinhação, de completar lacunas, onde o espectador acompanha integralmente os movimentos de cena, acometido de muitas surpresas pelas resoluções surreais e ilógicas que a dramaturgia propõe.

Nesta inevitável comparação entre versão adulta e infantil, concluo que me sinto muito mais confortável e inteligente neste último trabalho da companhia – o que pode ser um sintoma da minha personalidade, mas também um resultado positivo desse esforço de agradar um público-alvo tão inofensivo e, ao mesmo tempo, tão exigente. Talvez, nós, públicos, sejamos mais crianças ou mais artistas do que nós, artistas, pensamos que somos. No frio lago do conceito, às vezes nos esquecemos de que os maiores encantamentos são coisas pequenas, simples e des-importantes, e que o exercício de criar, muitas vezes, é mais inspirador do que o de criticar.

[*] Texto elaborado a partir do espetáculo Pequena Coleção de Todas as Coisas, da Cia. Dani Lima, apresentado na Bienal SESC de Dança, em Santos (set/2013).

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