A relevância da arte do efêmero na urgência do mundo contemporâneo

A relevância da arte do efêmero na urgência do mundo contemporâneo

“Toda arte é, ao mesmo tempo, superfície e símbolo.
Aqueles que vão abaixo da superfície fazem-no por sua conta e risco.
Aqueles que lêem o símbolo fazem-no por sua conta e risco.
É o espectador, e não a vida, o que a arte reflete realmente.
A diversidade de opiniões sobre uma obra de arte indica que é nova, complexa e vital.
Quando os críticos divergem, o artista está de acordo consigo mesmo.
Pode-se perdoar a um homem a realização de uma coisa útil, contando que ele não a admire. A única desculpa para se fazer uma coisa inútil é admirá-la imensamente. Toda arte é absolutamente inútil”.
(Oscar Wilde)

Gostaria que lêssemos atentamente a essa citação de Oscar Wilde extraída do prefácio do livro O Retrato de Dorian Gray, de 1890. Escrito em outro século e introduzindo uma influente obra literária, esse trecho esclarece intimidades vitais na relação entre artista, obra e espectador – a tríade da arte.  Se transportarmos ele para nossa época inserida em outro contexto social, cultural e político, ainda assim observamos palavras pertinentes que ecoam: utilidade, relevância, admiração…
Vamos nos ater detalhadamente à citação de Wilde fazendo uma relação com as artes do corpo e da cena hoje. “Toda arte é, ao mesmo tempo, superfície e símbolo.” Ora, nada mais verdadeiro para o ator e bailarino. Seu corpo, matéria de vida e memória, é também matéria criativa. É seu instrumento, sua ferramenta e seu significado. O ator e o bailarino criam à partir dessa estrutura viva que lhes é inerente, e por isso, vida e obra, tornam-se praticamente indissossiáveis. A partir do jogo da criação e composição, o ator e bailarino utilizam sua própria vivência como estímulo para sua criação. Eu sou, estou, fui, invento e apresento. Meu personagem, meu movimento só acontece à partir da minha atuação, do meu ser no mundo, e minha composição depende do que já vivi, apreendi, imagino e posso ser. Todavia, continua Wilde, a leitura e “interpretação” dos símbolos e significados depende do espectador e das possíveis conexões que esse faz.  Sendo assim, a reverberação da obra, depende do contexto no qual está inserido e fundamentalmente da relação estabelecida entre artista-ator e espectador. No entanto, não está mais na alçada do artista as leituras feitas por quem o assiste. Metaforicamente, a responsabilidade do artista está em jogar uma pedra no lago, as ondas que dali saem não estão mais sob seu controle, e essas por sua vez dependem da profundidade, tamanho e densidade do lago, ou seja, seu contexto.  Como diz Wilde, a apreensão da obra de arte se dá “por conta e risco” do espectador, portanto, é a ele que a arte reflete, e não a vida em si.
No entanto, são as últimas frases dessa citação que mais retém minha atenção e que gostaria de colocar aqui em questão:

“Pode-se perdoar a um homem a realização de uma coisa útil, contando que ele não a admire. A única desculpa para se fazer uma coisa inútil é admirá-la imensamente. Toda arte é absolutamente inútil”.

Sendo assim, volto à questão do contexto e da obra de arte. Em nossa época, qual a relevância da obra de arte? E ainda mais, qual a função ou utilidade das artes da cena, artes do efêmero, nesse cenário plural de dispositivos, tecnologias e turbilhão de informações?
Vivemos sob a égide de um capitalismo financeiro desenfreado, onde a tecnologia, o lucro e consequentemente a utilidade são fundamentais no cotidiano do homem moderno. Nossa era é a do produto, e para que haja sempre demanda de novos, façamos deles sempre descartáveis. Sendo assim, o valor de algo é dado, primeiramente por sua utilidade, segundo por sua atualidade, e para que isso funcione, a durabilidade é comprometida. Isso se reflete na arte e seus processos de criação. A arte, profissão declarada autônoma, é a mais dependente e controlada pela lógica capitalista. Seus financiadores, o Estado e empresas privadas, não o fazem por menos. Querem uma contrapartida. Para isso, são necessários páginas sobre a relevância do projeto, ou seja, a justificativa para a criação de um artista na sociedade, além do cumprimento de inúmeras exigências e burocracias para o qual o artista não foi preparado. No tempo da arte por edital, é preciso ter um produto artístico à venda, com processo rápido e barato, e claro, inédito. Para continuar se inserindo nas políticas de financiamento público e privados, o artista precisa sempre apresentar um projeto de obra inédito, conferindo assim o caráter de atualidade constante do seu material para atrair interesse do seu patrocinador. Sendo assim, o artista que é também produtor e vendedor deve explicar e convencer seus possíveis patrocinadores o porquê sua obra ainda embrionária, ou seja,seu projeto, será interessante. Qual a relevância e justificativa para que ele ganhe meios materiais para fazê-lo? Qual a importância e utilidade das artes da cena hoje?
Nesse “fast-food” da criação, ainda somos atropelados pelo tempo e suas tecnologias. Vivemos sob a onipotência das imagens. Podemos estar presentes virtualmente em qualquer lugar do planeta, em qualquer tempo. A tecnologia atualiza constantemente seus dispositivos nos deixando conectados e presentes à todo momento. Se no final do século XIX passamos na arte pela crise da representação com a entrada do cinema e da fotografia, qual crise vivemos hoje? Nossa concorrência tecnológica audiovisual, acessível à grande massa, coloca um grande desafio para as artes vivas. Onde estamos? Por que fazê-lo? Como fazê-lo? Aderimos às novas tecnologias ou lançamos mão de tudo em valorização do simples? Em que graduação desses extremos estamos? E porquê insistimos em permanecer nele? O que me faz trocar o cinema 3D com os últimos efeitos especiais pelo teatro? O que me faz sair de casa, da frente do meu computador com acesso universal, para ir assistir um espetáculo de dança? E ainda mais, o que me faz ainda insistir em horas de ensaio, treinamento e pesquisa, em algo que, superficialmente, parece tão em desvantagem nessa concorrência tecnológica audiovisual?
Parece que há algo para além de tudo isso. Algo que faz permanecer. Um voto de resistência pelo sensível. Há algo que o Skype e o Facebook nunca vão dar conta: o toque, o cheiro, o calor. Posso estar virtualmente em qualquer lugar do mundo, mas o que sinto de onde estou? O que apreendo do lugar que estou? Talvez seja isso que as artes da cena revogam: o estar, o sentir, o sensível, o sensorial. Algo que é preciso a presença para haver relação. Algo que questiona a presença e questiona a relação, que te tira do lugar, mesmo sem sair dele. Que te traz um mundo para além das palavras, transbordando as imagens. O teatro, o movimento, o palco e a cena não são só imagens. São imagens em formação e dissolução, são acontecimentos, devires.
Nesse sentido, voltando a Wilde, a arte é completamente inútil. Ela não serve para nada, pois tudo que serve a uma utilidade está fadado ao descarte. Tudo que serve à algo pode ser substituído por máquinas, dispositivos e trocado pelo seu modelo mais atual. Se o casamento acontecesse por interesse, facilmente seríamos trocados por robôs. O sensível não serve para nada, ele é. A imaginação, assim como a sensorialidade são essências do humano, e que muitas vezes, escondem-se em slogans para tentar serem vendidos por grandes empresas. Talvez, essa seja nossa estratégia de sobrevivência ao tentar responder em 2500 caracteres a justificativa para um projeto de criação: camuflar a sensorialidade dentro de uma utilidade, mas no fundo sabemos que o fundamento da arte não é sua utilidade, mas sua necessidade.
Termino então com uma citação do grande poeta das inutilidades, Manoel de Barros.

“Há muitas maneiras sérias de não dizer nada,
mas só a poesia é verdadeira”
(Manoel de Barros)

Bibliografia

WILDE, Oscar. O Retrato de Dorian Gray. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
BARROS, Manoel de. Livro sobre Nada.Rio de Janeiro, São Paulo: Editora Record, 1996.